Jussara Lucena, escritora

Textos

O troco do Saci

Quando eu vejo um redemoinho surgir do nada, já vou me preparando. O danado vai aprontar ou já aprontou alguma coisa. Há quem não acredite nas histórias do Saci. Eu nunca o vi, mas tenho certeza de que ele existe. Pode perguntar para qualquer um, as traquinagens dele são contadas por todos os povos. Acho até que ele muda de forma de acordo com o gosto e os medos de cada um. E você, como imagina o Saci? Já viu algum?
Também é certo que o Saci leva a fama das travessuras de alguns, que de seres mágicos ou mitológicos não tem nada. Mas há casos em que o Saci apronta e meninos e meninas sapecas levam a fama. Isto aconteceu com o meu primo Zeca, um sujeito que gostava de fazer das suas e jogar a culpa nos outros, principalmente nos mais novos.
Certa vez, na volta do colégio, num dia seco e empoeirado de junho, começaram a se formar vários redemoinhos. Alguns prejudicavam a corrida de bolinhas de gude, disputada pelo meu primo e alguns amigos da classe. O Zeca mirou com cuidado a bolinha preferida do Tito. Quando foi soltá-la, um dos redemoinhos formado jogou pó em seus olhos e ele errou feio. A jogada foi sem força e ele praticamente entregou a búrica para o Pedro.
- Seu Saci filho da mãe! Olha que eu lhe pego com a peneira, arranco o seu capuz, você perde os seus poderes e aí vamos nos entender. Quero ver o que consegue fazer trancado numa garrafa! – gritou o Zeca.
Você pode não acreditar, mas o redemoinho fez meia volta e envolveu o Zeca, que desesperado tentava proteger a boca e o nariz de tanto pó. A camisa branca do uniforme tornou-se vermelha. Nem que meu primo rolasse na estrada, conseguiria ficar tão sujo.
Meu primo disse alguns palavrões impublicáveis, ofendendo não só o Saci, mas toda a sua família, principalmente a mãe do capetinha.
O Natalino, assustado, disse:
- Não se brinca com Saci, quem dirá ofendê-lo! Meu vô diz que ele tem parte como o Demo!
- Pois você vai ver só! Vou fazer uma armadilha para ele! – quase cochichou o Zeca.
- E como você vai fazer isso?
- Eu faço arapuca para passarinho, rede para pregar peixe. Até espingarda para a onça já fabriquei. Não vai ser um sacizinho que vai fazer pouco de mim! Se ele resolver aparecer, meto fogo no taquaral e aí quero ver um outro Saci nascer. Quem mandou ele se meter a besta comigo!
De repente surgiu um novo redemoinho e cresceu, cresceu, cresceu. Todos ficaram assustados. Tão rápido quanto surgiu, desapareceu. Tudo ficou num silêncio só. Sem uma brisa sequer. Quase que dava para se ouvir o som das formigas que numa trilha levavam algumas folhas cortadas.
Passados alguns segundos, o Zeca disse:
- Está vendo, já se borrou de medo!
Os outros meninos e eu, não tínhamos tanta certeza assim. Fomos para casa um pouco preocupados com o desafio do Zeca. Com o primo do tinhoso não se brinca. – Pensávamos, eu e os amigos do Zeca.
Antes de continuar a história, preciso lembrar uma coisa. Naquele tempo, as crianças, além de ir à escola, eram mais participativas nas atividades familiares, principalmente no interior. Minha tia, para complementar a renda da família, criava vacas leiteiras. As vaquinhas se alimentavam, na maior parte, com coisas que ela mesma plantava no terreno onde morava.
A ordenha também ficava por conta da minha tia. Aos meus primos cabia tarefas como preparar o trato para os animais e a entrega do leite. Os bichinhos não comiam pouco. Era preciso muito pasto, mandioca, abóbora, milho, além da ração, do sal e outros minerais. Tudo precisava ser cortado, picado, debulhado, medido, misturado e depois virava comida de vaca.
Ninguém reclamava de trabalhar um pouco. Todos iam bem na escola também. Trabalhar não doía. O trabalho ensinava-nos a valorizar mais cada conquista.
Voltemos a história do Saci. No fim da tarde, o Zeca nem lembrava mais dos xingamentos à família do Pererê, mas o rapazinho de uma perna só não tinha a memória curta assim.
Minha tia precisou fazer uma consulta médica, então, naquela tarde tudo ficaria por conta do meu primo, já que a minha prima, um pouco mais velha, serviu de companhia para a mãe. Então, além da entrega do leite, ajudei o Zeca no preparo da comida das vaquinhas. Sou testemunha de que meu primo fez tudo com o maior cuidado, já que minha tia havia prometido que se tudo fosse bem feito ele ganharia alguns trocados e que já tinham endereço certo: comprar alguns ingredientes para fabricar pólvora.
Quando minha tia chegou, já estava escuro e tudo parecia em ordem. Meu primo, cansado, dormia. Na mesa da cozinha estava os litros de leite que sobraram depois da ordenha e da entrega. Minha tia pensou em repreender meu primo por ter esquecido os litros fora da geladeira. Deixou para o dia seguinte.
Como de costume, mal o dia começava a amanhecer, minha tia já estava no quintal para retomar o trabalho diário. Mesmo depois do café forte, ela se sentia sonolenta. A quebra da rotina no dia anterior ainda deixava sinais de cansaço. Quando ela abriu o portão que separava o terreno da casa e a estrebaria, não acreditou no que via. Esfregou os olhos para ter certeza de que não sonhava. No quintal, a plantação de abóboras, de pepino e de hortaliças estava toda pisoteada pelas vacas, que naquela hora saboreavam algumas vagens de feijão-de-vara que pareciam perfeitamente alinhadas na plantação.
- O Zeca me paga! Pedi tantas vezes que não esquecesse o portão aberto! E que brincadeira é essa de fazer trança no rabo das vacas. Este menino merecia levar um coice de uma delas!
As vacas pareciam esfomeadas. Ela pensou que meu primo tivesse se distraído com alguma coisa e esquecido da comida das bichinhas. Apenas uma vaca, a mais velha, a Estrela, havia ficado em seu lugar e mugia desesperadamente, parecia assustada.
- Coitada da minha Estrela, minha vaquinha obediente. Está com fome? Espere aí que já vou te dar algo para comer. – falava minha tinha com a sua vaca, como se o animal fosse uma criança.
A tia foi procurar pelo velho facão, que havia sido do pai dela. O facão havia resistido ao tempo, quase tão velho quanto o seu antigo dono. No fim do dia ficava lá, fincado no cepo de imbuia. Como de costume, minha tia o pegou pelo cabo e puxou com vontade. Saiu muito fácil e minha tinha teve que dar um passo atrás para se reequilibrar. Já firme novamente, olhou com atenção para o facão. Metade dele havia ficado no cepo.
- Lazarento do Zeca, quebrou o facão e ainda o disfarçou! – esbravejou minha tia.
A sorte do Zeca e que ele havia saído mais cedo de casa, junto com o pai. Depois foi para a escola. Rapidinho a vizinhança soube do ocorrido, pois minha tia não economizava o tom de voz, nem os palavrões para descrever o ocorrido. Um menino, amigo do Zeca que ouviu um pouco do barulho de minha tia foi até a escola, na saída, para alertar o Zeca.
- Mas eu não fiz nada disso, meu primo está de prova!
- Eu falei, Zeca! Foi provocar o Saci, deu nisso! – afirmava o Natalino.
Meu primo, assustado, saiu correndo. Todos imaginavam que tivesse ido para casa. Desapareceu por dois dias. Minha tia chorava desesperada. Meu tio já havia chamado a polícia para ajudar nas buscas. Eu levei alguns tapas também, afinal de contas eu era um dos ajudantes do meu primo e não adiantou argumentar que havíamos feito tudo certinho.
- Menino é tudo igual. Um protege o outro, dizia uma outra tia mais velha, que também morava em frente.
No fim da tarde do segundo dia, eu estava na frente de casa, quando um redemoinho de formou. Ele passeava pela rua, ia e voltava, como se me chamasse. Resolvi segui-lo. Caminhei por quase um quilômetro pela estrada que dava acesso ao rio e que ladeava a fábrica de compensados. No final da rua, o redemoinho pareceu estacionar em frente a um tubo de concreto. Uma de nossas brincadeiras era imaginar que o tubo fosse um dos nossos foguetes, o Apollo 26. Olhávamos para o céu, pela abertura superior e nos imaginávamos cortando o espaço rumo a Lua.
Escalei a parede do tubo. Encontrei lá dentro o Zeca, coberto de barro e salpicado de penas de galinha. Chorando, abatido. Eu tinha um caqui no bolso da calça. Ofereci ao meu primo, que estava faminto. Não sei se ele lembrou de cuspir as sementes.
- Sabe primo, imaginei um bocado de armadilhas para o Saci, depois daquela manhã na volta da escola. Parece que caí em todas que eu mesmo imaginei. Ele armou elas para mim. A primeira, foi cair numa valeta, coberta por vassourinha. Depois, passei por um bando de galinhas assustadas que pularam em minha direção. Além do cheiro de bosta, parece que essas penas cresceram em mim. Quanto mais eu tiro, mais pena aparece!
- Vamos primo, em casa você toma um banho!
- Como está a minha mãe? Ainda brava comigo?
- Não sei se ela está mais brava ou mais preocupada. Tem uma coisa: desde ontem ela não larga uma vara de marmelo.
Mesmo assim, convenci meu primo a voltar para casa. Ao longe, redemoinhos se formavam. Meu primo seguiu o caminho todo arrepiado, não sei se sentia mais medo do capetinha ou da reação da minha tia.
Não consegui saber exatamente o que aconteceu depois que meu primo voltou, ele nunca me contou. Ficou por três dias fechado em casa. Eu, levei mais alguns puxões de orelha, por que pensaram que eu sabia desde o início onde meu primo se escondera.
Eu tive uma certeza, se foi mesmo o Saci quem aprontou para o meu primo, ele não é tão mal assim. Se fosse, não teria me avisado onde ele se escondera.
O Zeca não aprendeu a lição. Algum tempo depois, quebrou um de meus dedos, numa guerra de sabugos de milho.

Texto selecionado para a Coletânea Saci Pererê - Novas histórias, organizado pela Perse em 2018.

Adnelson Campos
22/07/2018

 

 

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